Nunca um termo arquitetônico apanhou tanto nas manchetes de jornais. E não foi pelo seu sentido originário. A metáfora acabou prevalecendo e o termo lobby, usado para designar o salão de entrada de um edifício, virou sinônimo de malfeito, de conversas ao pé de ouvido quase nada republicanas. Nessa visão míope, o local de passagem do tomador de decisão, o lobby, virou o endereço das negociatas, dos engravatados que se acotovelam para oferecer e receber vantagens. Desmistificar esses conceitos empobrecidos, além de oxigenar a discussão sobre a relação entre grupos de interesse e tomadores de decisão, é um dos grandes méritos do livro “Lobby e Políticas Públicas” (série Bolso, Editora FGV), dos pesquisadores Wagner Mancuso, professor de Ciência Política da USP, e Andréa Gozetto, coordenadora do MBA em Relações Governamentais da FGV/IDE. Em pouco mais de três horas de leitura, é possível compreender por que a legitimação do lobby é fundamental para o amadurecimento do processo democrático. A linguagem acessível não prejudica o rigor conceitual, o que faz do livro um guia indispensável para iniciantes e iniciados sobre o assunto. Em entrevista exclusiva para o blog Tudo é Política, do portal sigalei, Andréa aprofunda as questões abordadas pelo livro. As respostas assertivas e bem fundamentadas transformam a conversa em uma aula demolidora de estereótipos sobre o lobby. Boa leitura.
Tudo isso está relacionado ao próprio estigma de marginalidade, construído pela mídia a partir da década de 1970, quando se passou a utilizar o termo lobby como sinônimo de corrupção e tráfico de influência. No Brasil, a ciência política tem uma dinâmica bastante própria e os interesses não são levados em consideração. Todas as vezes em que a gente vê um estudo sobre representação política, os grupos de interesse não estão contemplados. A literatura sobre estudos legislativos está sempre voltada a partidos políticos. Então, parece que os interesses não fazem parte do dia-a-dia da política. Eu e o Wagner não somos os precursores desse olhar para o fenômeno do lobby. Anteriormente, o pesquisador da UNB Murillo Aragão escreveu sua dissertação de mestrado sobre grupos de pressão em meados da década de 1990. A partir de 2010, começaram a surgir muitos trabalhos sobre grupos de interesse. O problema é que, como o processo decisório não é aberto o suficiente, fica muito complicado para a opinião pública entender como ele funciona no Brasil. Por conta disso, o tema tem ficado apenas com especialistas. Com o maior processo de descentralização do processo decisório e maior transparência, espera-se que qualquer cidadão possa entender quem defende o quê, por quê e como.
Não existe melhor combinação do que democracia e Lobby. Se efetivamente nós queremos um país democrático, a sociedade civil e o mercado precisam estabelecer um relacionamento sólido e contínuo com os membros do poder público, para que os interesses relevantes legítimos desses atores possam ser ouvidos e levados em consideração.
Com certeza. Basta observar, por exemplo, a importância que as Confederações possuem na construção da agenda nacional e a interlocução que o governo tem com essas Confederações. Como é que se governa sem estabelecer um diálogo com a sociedade civil e com o mercado? E quem são os representante dos interesses da sociedade civil e do mercado? São os lobistas. O desafio é superar o estigma de marginalidade que envolve a atividade. Existe lobby ilícito? Sim, existe. No entanto, há uma miríade de organizações que levam os seus interesses relevantes e legítimos ao conhecimento do governo de forma lícita. Essas ações precisam ser melhor divulgadas para que o cidadão entenda que fazer lobby é um direito garantido pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º. Afinal, democracia significa participar do processo decisório e não unicamente delegar o poder nas urnas.
Além de divulgar o nosso trabalho acadêmico, pois ambos defendemos nossas teses sobre lobby em 2004, o objetivo é sustentar a nossa visão sobre lobby. Entendemos lobby como defesa de interesses junto aos membros do poder público que podem tomar decisões sobre políticas públicas. Isso envolve também os seus assessores diretos e os mais próximos. Entender lobby como defesa de interesses significa assumir a sua neutralidade. Ou seja, o lobby é apenas um instrumento de representação de interesses. Se essa representação de interesses se dará de forma lícita ou ilícita, cabe a organização que utiliza esse instrumento escolher. Obviamente que, para trazer contribuições para a democracia, o lobby precisa ser feito de acordo com o ordenamento jurídico pátrio. Acreditamos que o lobby é um instrumento inerente à sociedade democrática. Por isso, o nosso interesse é trazer uma visão sobre essa atividade a partir de um forte rigor conceitual, mas em uma linguagem acessível.
Não existe um perfil específico, porque o que garante o êxito desse profissional é o seu conhecimento profundo sobre o setor de atuação do grupo que ele representa. Ele pode ter qualquer tipo de formação acadêmica. Até algum tempo, os formados em direito se sobressaiam, mas hoje a gente tem visto todo tipo de formação acadêmica: direito, administração, comunicação, relações internacionais. Normalmente, esse profissional é homem, tem mais de 40 anos e é pós-graduado. Ele precisa ter habilidades e competências bastante abrangentes para fazer um trabalho que é bastante sofisticado.
A regulamentação da atividade seria benéfica para a atividade e a colocaria em outro patamar. Hoje em dia as pessoas ainda confundem um pouco a questão da legalidade com a legitimidade. O fato do lobby não ser regulamentado não significa que ele seja ilegal ou ilegítimo. O que se busca com a regulamentação do lobby não é legitimidade e sim a garantia de acesso isonômico a todos os grupos de interesse que querem influenciar o processo decisório, dando assim maior transparência para o processo como um todo. Mas, sustentamos no livro que a regulamentação do lobby não é uma panaceia. Um dos grandes problemas envolvendo a representação de interesses é a assimetria informacional. Muitos grupos de interesse possuem mais recursos políticos do que outros e eu não estou falando única e exclusivamente em dinheiro. Forte liderança, visibilidade ou alta capacidade de mobilização são recursos políticos. A regulamentação do lobby não tem poder para mudar esse fato. Outra questão que está fora do alcance dessa medida é o déficit de ação coletiva de alguns grupos. Em sistemas democráticos existe sempre um grau de assimetria informacional e déficit de ação coletiva. Assim, a regulamentação pode ajudar a dirimir esses problemas, mas seu foco principal deve ser transparência e accountability. Uma boa regulamentação é aquela que cria instrumentos de coleta e divulgação de informações acerca dos meandros do processo decisório. Atualmente, é preciso investir tempo, dinheiro e energia para determinar com clareza quem toma qual decisão e quais são os critérios utilizados para isso. É um trabalho de detetive.
Um dos grandes desafios da atividade de lobby é a resistência por parte do próprio tomador de decisão em assumir a legitimidade da representação de interesses realizada por atores da sociedade civil e do mercado. Apesar de todos os canais institucionais de participação política existentes, ainda há muita resistência em ouvir e em levar em consideração interesses relevantes e legítimos. Outro desafio importante a superar é a mútua desconfiança que se estabeleceu entre Estado e mercado, principalmente. Então, quando uma empresa privada se aproxima do Estado, o Estado desconfia, pois entende que essa empresa está em busca de benefícios e privilégios. Quando o Estado quer se aproximar, a empresa desconfia, pois tem medo de ser envolvida indevidamente em atividades escusas. Essa baixa relação de confiabilidade é um dos motivos que atravancam o melhor exercício da atividade de lobby. Ainda está para ser construída uma cultura de colaboração entre Estado, sociedade civil e Mercado. O lobby é um instrumento que pode contribuir muito para que essa construção ocorra. No entanto, precisamos que boas práticas sejam melhor divulgadas e disseminadas.
Não existe um script pré-definido para que você tenha maior sucesso na atividade. O que a literatura indica é que é preciso fazer de tudo ao mesmo tempo, com muita intensidade e, sobretudo, ser extremamente flexível, pois o imponderável da política sempre se impõe. Assim, é preciso ser capaz de ter uma grande capacidade de avaliação e monitoramento para, por exemplo, identificar uma janela de oportunidade que pode ser decisiva para trazer o resultado que você deseja. Lobby é informação e comunicação. A informação é matéria-prima dessa atividade. É preciso fundamentar o ponto de vista apresentado por meio de dados advindos de pesquisa científicas, artigos acadêmicos, dossiês elaborados por organismos internacionais. Isso é importante para garantir que as informações que serão levadas ao tomador de decisão sejam precisas, concisas e suficientes para dar conta de sustentar tal ponto de vista. Há quatro questões essenciais e que envolvem informação e comunicação: o que dizer? A quem dizer? Como dizer? Em que momento dizer?
Os profissionais de relações governamentais utilizam o compliance como um escudo. Então todo esse movimento em bloco pró-transparência é realmente sensacional para a área de relações governamentais e é muito festejado entre os profissionais. A transparência não incomoda os profissionais de relações governamentais. Incomoda mais os membros do poder público, porque eles não estão acostumados a dizer com quem eles conversam, sobre o que eles conversam e por que eles conversam. Também não deixam claro quais são os critérios para a tomada de decisão. Se o membro do poder público recebeu o mandato, ele tem o dever de ser transparente. Tem que dizer com quem está conversando, sobre o que ele está falando e os critérios que ele está utilizando para levar em consideração ou simplesmente deixar de ouvir determinado segmento social ou grupo de interesse.
Sem dúvida. Tenho sustentado veementemente que as empresas que ainda não entenderam o quão crucial relações governamentais são para a sustentabilidade dos seus negócios ou não existem mais ou estão em declínio. Cada vez mais, as empresas e as organizações da sociedade civil estão entendendo a importância de se criar um relacionamento sólido e contínuo com o governo. Para que esse relacionamento seja construído com base em transparência, impessoalidade e princípios éticos incontestáveis é preciso ser realizado por um profissional especializado. Sendo assim, tenho certeza de que a área de relações governamentais está em franco crescimento. Já é possível identificar um aumento exponencial no número de profissionais engajados em tal atividade e os cursos de capacitação não param de surgir.
Eu acho que a palavra lobby tem o estigma de marginalidade tão forte que dificilmente a gente vai conseguir arrefecer esse estigma. Hoje em dia já não se fala muito em lobby, falamos em relações governamentais e em lobby e advocacy como elementos-chave dessas relações governamentais. Muito mais importante do que a palavra é incentivar os cidadãos a entender o quão importante é estabelecer um diálogo direto com aquele que toma decisões que impactam tão fortemente a nossa qualidade de vida. Quanto mais democrático é o sistema, mais diálogo deve existir entre os diversos segmentos sociais. Então, a naturalização desse diálogo vai contribuir fortemente para arrefecer o estigma de marginalidade que envolve a atividade de lobby.
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