Confira o estudo feito pelo CEPI-FGV utilizando a Sigalei para a análise de como o Congresso está abordando o tema das criptomoedas e criptoativos.
riptomoedas e criptoativos atraem cada vez mais olhares curiosos e ambiciosos. O número de promessas baseadas na tecnologia digital só aumenta, desde ganhos maiores que qualquer outro tipo de investimento (Bitcoins foi um dos únicos investimentos que ganhou da inflação em 2021[1]), ao sustento de famílias por meio de jogos virtuais (como a cidade de Conceição do Pará, autoproclamada a primeira cidade de Jogos NFT do Brasil[2]). Com essa atenção, vem também a movimentação legislativa no Congresso Nacional.
Neste artigo, exploro o panorama dos projetos de lei sobre criptomoedas e criptoativos apresentados no Congresso Nacional entre 2015 e 2021, com apoio de funcionalidades da Plataforma Sigalei, de acompanhamento da atividade legislativa. Você verá que a pauta está voltada principalmente para os riscos causados por essa tecnologia emergente, com foco na criminalização e na coibição de determinadas condutas, além da defesa de direitos dos consumidores. Reflito, então: estaríamos perdendo uma oportunidade de sermos mais propositivos?
Por meio da plataforma Sigalei, verifiquei a existência de 13 projetos de lei apresentados desde 2015 (data do primeiro deles) até 2021 sobre o tema de criptomoedas e criptoativos.[3] Comento a seguir pontos de destaque desse panorama geral:
O panorama legislativo mostra que a matéria é considerada relevante pelo Congresso e tem recebido atenção nos últimos meses por meio de tramitações relevantes e de audiências públicas. Percebe-se também que vem sendo tratada como pauta de caráter econômico e penal, temas trazidos por parlamentares de centro e direita.
Um aspecto que chama a atenção nos projetos de lei é a abordagem de criptomoedas e criptoativos a partir dos riscos que eles oferecem. Os principais riscos são a facilitação de atividades criminosas, principalmente lavagem de dinheiro e esquemas de pirâmide financeira ou fraudes, e a lesão a investidores e/ou consumidores, pontuados em 11 dos 13 projetos. Poderia transcrever trechos de todas as justificativas que demonstram o ponto, mas exemplifico com o comentário do Senador Flávio Arns no PL 3825/19:
Assim, a falta de regulamentação e fiscalização desse novo e crescente setor representa sérios riscos aos investidores e à higidez da ordem econômico-financeira, diante da possibilidade de uso de tais ativos virtuais para o financiamento de atividades ilegais diversas, tais como lavagem de dinheiro, evasão de divisas e tráfico de entorpecentes, ou mesmo para a obtenção de ganhos ilícitos em detrimento da coletividade, como a criação de pirâmides financeiras e outros mecanismos fraudulentos. (grifos meus)
O temor dos parlamentares com o uso de criptomoedas e criptoativos para atividades ilícitas foi reforçado por episódios recentes de fraudes e de golpes que utilizaram essas moedas virtuais, principalmente a bitcoin, para lesar pessoas. 6 dos 13 projetos mencionam expressamente na justificativa episódios de golpes, pirâmides financeiras, atividades terroristas, sendo que 4 deles exemplificam o perigo das fraudes com a recente prisão do “Faraó das Bitcoins”, resultante da Operação Kryptos da Polícia Federal[7], deflagrada em maio de 2019. No caso específico dos esquemas de pirâmide financeira, os projetos procuram criar um tipo específico, com pena aumentada em relação à atual, de 6 meses a 2 anos, e multa, de acordo com o art. 2º, IX, da Lei nº 1.521/1951 (Crimes contra a Economia Popular)[8].
O foco nos riscos também se reflete na classificação de posicionamentos dos projetos de lei. Considerei as proposições conforme fossem mais favoráveis ao livre mercado e à desregulamentação do tema, ou fossem mais favoráveis à regulação, por meio de previsão de deveres, direitos e competências (Figura 4). 7 dos 13 projetos se caracterizaram por abordagem regulatória que limitava a atuação dos atores econômicos — por exemplo, exigindo autorização para desempenho da atividade –, previa direitos de consumidores e investidores, e aumentava o poder fiscalizatório e regulatório do Estado. Outros 4 projetos se caracterizaram por coibir abusos no mercado, criminalizando condutas, mas sem limitar os atores econômicos. Um único projeto caminhou no sentido contrário, de ampliar as possibilidades de uso de moedas virtuais, autorizando a remuneração de trabalhadores da iniciativa privada e servidores públicos por meio de criptomoedas (PL 3908/2021).
Vale notar, no entanto, que o rápido avanço da criptoeconomia dá origem a novos desafios e riscos. A atual onda de NFTs (non-fungible tokens), a tokenização dos programas de sócio-torcedor de clubes de futebol[9], além da perspectiva de uma economia baseada na ideia de metaverso, com itens virtuais que podem ser apropriados (como roupas virtuais[10] ou itens de jogos[11]), são alguns exemplos de fenômenos que não estão suficientemente abordados nos projetos de lei. Cito potenciais riscos trazidos por essas novidades:
A abordagem legislativa foca os riscos trazidos por criptomoedas e criptoativos. Os legisladores estão preocupados em coibir principalmente atividades ilícitas (de lavagem de dinheiro a terrorismo) e lesões a consumidores e investidores. O principal ponto de pressão são as exchanges e demais prestadores de serviços com ativos virtuais, tendo em vista o papel de porta de entrada, intermediadora de transações e custódia de ativos que desempenham.
O principal ponto da minha reflexão neste artigo é o seguinte: a existência de projetos de lei que procuram mitigar os riscos envolvendo criptomoedas e criptoativos é justificável e relevante, mas também é possível pensar o direito para aumentar potenciais e oportunidades que elas oferecem.
É possível observar que os projetos de lei deixam em segundo plano outro tipo de função do Direito: o estímulo e o incentivo a determinadas condutas, uma função mais propositiva e indutora de comportamentos. Podemos trabalhar com as criptomoedas não apenas sob a perspectiva das proibições e dos direitos de pessoas contra más condutas, mas também do ponto de vista da construção de ambiente saudável e inovador. O argumento pode ser ilustrado por quatro exemplos, provenientes dos próprios projetos de lei pesquisados:
Vale notar que, em pelo menos um âmbito de aplicação, a atuação dos legisladores é fundamental: na adoção de criptomoedas e criptoativos pelo Poder Público. O princípio da legalidade exige que haja normas que amparem gestores que desejem experimentar inovações por meio do uso de tecnologias emergentes. É o exemplo do movimento de tokenização de obras de arte e galerias públicas[24], com o objetivo de aumentar as receitas de instituições de cultura.
Ainda que o atual desenvolvimento das tecnologias de criptomoedas e criptoativos não permita vislumbrar todo o potencial de aplicação, é importante que os legisladores também considerem as oportunidades que elas proporcionam. Regras que estimulem condutas que tornem o ambiente saudável e vibrante ou que tragam benefícios para a economia real a partir das transações digitais exigirão exercício de criatividade e debate que pode ser feito por meio de audiências públicas nos projetos em tramitação.
O debate em torno da criptoeconomia está posto no Congresso Nacional e projetos avançam para regulá-la. O fato de que esteja havendo diálogo com mercado e academia por meio de audiências públicas ou auxílio à elaboração de projetos (caso do PL 4207/2020) mostra, de um lado, que o tema demanda conhecimento técnico e, de outro, que os parlamentares estão permeáveis a ideias e a sugestões. Parece haver uma oportunidade para advocacy e diálogo com atores relacionados ao tema.
No entanto, a matéria não atraiu uma avalanche de projetos, por enquanto. A própria tecnicidade do tema pode ajudar a explicar por que só houve 13 projetos nos últimos cinco anos — bem menos, por exemplo, do que os mais de 100 projetos apresentados para regular o trabalho em plataformas eletrônicas[25]. A tecnicidade também aparece nas justificativas. Alguns projetos apresentados estão acompanhados de justificativas bem embasadas, como o PL CD 2303/2015, que cita vários estudos internacionais, e o PL SF 4207/2020, que contou com apoio de acadêmicos na sua elaboração. São textos que mostram algum conhecimento dos parlamentares sobre o fenômeno a ser regulado, ainda que sem descer aos detalhes. Alia-se a isso a percepção de que vários dos temas poderiam ser regulados em nível infralegal por autoridades administrativas (como mencionado pelo Senador Irajá em seu parecer[26], p. 7), ainda que tenham sido tímidas até o momento.
O foco nos riscos não pode tirar a atenção aos potenciais que essas tecnologias emergentes também oferecem. A prática de crimes e a lesão a direitos dos consumidores devem ser coibidas, mas os legisladores também podem dar passos adiante e procurar estimular comportamentos e benefícios que as criptomoedas e os criptoativos podem trazer. Questões envolvendo acesso à propriedade de bens digitais, financiamento da cultura, promoção do conhecimento aberto (open knowledge), uso de energias renováveis, oferta de serviços públicos, ampliação de direitos no ambiente digital, estímulo a práticas de cibersegurança como abertura de códigos e emprego de hackers de segurança, esses são apenas alguns dos potenciais vislumbrados e que ainda podem ser incorporados ao debate.
Este artigo foi elaborado por meio da plataforma Sigalei, de monitoramento legislativo. A busca por proposições legislativas foi atualizada pela última vez em 28 de janeiro de 2022 e usou uma série de palavras-chave combinadas com filtros de casa legislativa (Congresso, Câmara dos Deputados e Senado Federal) e tipos de proposição (projetos de lei ordinária, complementar, lei de conversão, medida provisória e proposta de emenda constitucional), sem restrição de data. As palavras usadas foram:
“criptomoedas” (3 resultados), “criptomoeda” (1 resultado), “criptoativo” (0 resultados), “criptoativos” (6 resultados, sendo 1 redundante), “NFT” (0 resultados), “cryptocurrency” (0 resultados), “cryptocurrencies” (0 resultados), “altcoin” (0 resultados), “altcoins” (0 resultados), “bitcoin” (0 resultados), “Bitcoin” (0 resultados), “bitcoins” (0 resultados), “tokens” (0 resultados), “token” (0 resultados), “smart contracts” (2 resultados, nenhum pertinente), “contratos inteligentes” (0 resultados), “blockchain” (1 resultado), “exchanges” (2 resultados, já presentes anteriormente), “moeda digital” (0 resultados), “moedas digitais” (0 resultados), “moeda virtual” (0 resultados), “moedas virtuais” (6 resultados, sendo 2 redundantes, 1 já encontrado anteriormente, e 1 não pertinente), “ethereum” (0 resultados), “wallet” (0 resultados), “wallets” (0 resultados)
O sistema retornou, ao todo, 11 projetos de lei pertinentes. Usei, então, a funcionalidade de pesquisa por similaridade textual, consultando os projetos que a própria plataforma sugeria como similares aos textos da amostra. Nessa consulta, foram adicionados mais dois projetos de lei que não tinham sido capturados na busca anterior, totalizando 13 projetos — 6 do Senado Federal e 7 da Câmara dos Deputados.
Para aproveitar ao máximo os insights que a plataforma oferece, utilizei os recursos de tags para codificar os projetos de lei com pontos de interesse. Usei a classificação de impacto para classificar as proposições segundo o impacto na liberdade para uso de criptomoedas. Usei a classificação de posição para classificar as proposições segundo elas favoreceriam mais o livre mercado da criptoeconomia ou fizessem proposições regulatórias, restringindo direitos e poderes dos atores econômicos, aumentando deveres e proibições, alargando o poder fiscalizatório do Estado, em nome de valores como proteção da ordem financeira, econômica, concorrencial ou social. Essas funcionalidades serão exploradas em artigos futuros.
Por fim, deixo meus agradecimentos aos comentários precisos e sempre importantes de Ana Paula Camelo e Mariana Chaimovich ao artigo.
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Links e Referências
[1] Maior parte dos investimentos perdeu para a inflação em 2021; exceções foram Bitcoin e BDRs
[2]Conceição do Pará: Primeira cidade dos Jogos NFT no Brasil
[3] Em ordem de apresentação: CD PL 2303/2015; CD PL 2060/2019; SF PL 3825/2019; SF PL 3949/2019; SF PL 4207/2020; SF PL 3706/2021; CD PL 2140/2021; SF PL 3876/2021; CD PL 2164/2021; CD PL 2234/2021; SF PL 4401/2021 (correspondente ao PL 2303-B/15 da Câmara); CD PL 2512/2021; CD PL 3908/2021.
[4] Aureo Ribeiro (SD); Flavio Arns (PODE); Capitão Styvenson (PODE); Soraya Thronicke (PSL); Eduardo Braga (MDB); Alexandre Frota (PSDB); Mecias de Jesus (Republicanos); Weliton Prado (PROS); Vitor Hugo (PSL); Paulo Ganime (NOVO) e Felipe Rigoni (ex-PSB, atual PSL); Luizão Goulart (Republicanos).
[5] Radar do Congresso [6] Direita cresce e engole o centro no congresso mais fragmentado da história[7] Operação Kryptos da Polícia Federal[8] Crimes contra a Economia Popular[9] Fan Token: A Criptomoeda do Torcedor![10] NFT na moda e o comércio de roupas digitais[11] BOMB CRYPTO - Game NFT[12] Exemplo de itens virtuais vendidos por dono ilegítimos [13] Acesso a bens virtuais por crianças e adolescentes [14] Exemplo de oferta de tokens que fracassam [15] Exis Scams[16] ApexBrasil - Capital Estrangeiro [17] Cambridge Bitcoin Electricity Consumption Index [18] Taxa média paga aos mineradores de criptomoedas[19] Moedas com bugs e falhas de programação[20] Memecoins [21] Remuneração em criptomoedas - Nova Iorque [22] Apreensão de 6.000 bitcoins pela Polícia Federal[23] Substitutivo do Senado aos PLs 3825/19, 3949/19 e 4207/20 [24] Tokenização de obras de arte e galerias públicas[25] 100 projetos apresentados para regular o trabalho em plataformas eletrônicas [26] Parecer PL SF 4207/2020
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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do CEPI e/ou da FGV e/ou as instituições parceiras.
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Este artigo foi escrito por:
Guilherme Forma Klafke — Doutor em Direito Constitucional pela USP. Líder de Projetos no CEPI FGV Direito SP. Professor de e-Contracts, Formação Docente e Operações Jurídicas de Transferência de Tecnologia no FGV LAW. Contato: guilherme.klafke@fgv.br
Como citar este artigo:
KLAFKE, Guilherme Forma. Projetos de lei sobre criptomoedas e criptoativos entre 2015 e 2021: Do foco em riscos para o foco em potenciais. Medium, https://medium.com/o-centro-de-ensino-e-pesquisa-em-inova%C3%A7%C3%A3o-est%C3%A1/projetos-de-lei-sobre-criptomoedas-e-criptoativos-entre-2015-e-2021-do-foco-em-riscos-para-o-foco-b6fb37c1fd93